Filmes que você deve ver antes de morrer

"ALELUIA GRETCHEN'' DE SYLVIO BACK, APÓS 40 ANOS AINDA MANTÉM SEU VIGOR ESTÉTICO E POLÍTICO

 
 
Dentro da filmografia do diretor catarinense Sylvio Back, "Aleluia Gretchen" é aquele que levou seu nome mais longe, em festivais na Europa, por exemplo, não sem antes vencer e polemizar em Gramado com os prêmios de Melhor Fotografia e Melhor Ator Coadjuvante, este para José Maria Santos, além de ter sido indicado a Melhor Filme.
 
O que causou mais alvoroço, isto em 1976, foi a questão política, ou seja, o tema da ascenção do nazismo no seio da sociedade brasileira e todas suas implicações daí decorrentes. Lançado na época da ditadura militar causou um estranhamento geral não só no público como na crítica, que não estavam acostumados com a abordagem nazista.
 
Narra a história da familia Kranz que ao longo de décadas passa a morar no Brasil e influenciar as pessoas de uma pequena cidade interiorana. Embora seu envolvimento com a Ação Integralista Brasileira e com a Quinta Coluna (pessoas que atuavam clandestinamente contra o país), esta trama tem sua linearidade com histórias paralelas onde não só as traições políticas são abordadas mas também as conjugais.
 
O filme faturou prêmios por onde passou como em Berlim e Nannanheim, na Alemanha e também em Chicago e outros inúmeros dentro do país.
 
Sylvio Back sempre se colocou como aquele que quis contar a outra história do Brasil, ou seja, a não oficial. Seu trabalho ao longo de sua filmografia de longas, curtas e documentários, sempre foi de questionamentos dos fatos, o que o levou a muitos embates permeados por polêmicas, como quando do filme "Rádio Auriverde", de 1990,  que mostrou com certa ironia (certa?) a campanha dos brasileiros da FEB na II Guerra Mundial, e que o diretor o colocou como "o filme mais odiado do país".
 
 
 
Aliás, este catarinense de 80 anos se vangloria de ter sido aquele que pela primeira vez no cinema brasileiro chamou Getúlio Vargas de ditador: "Polêmica não se premedita. É o que acontecido com quase todos os meus filmes, desde "Aleluia Gretchen".
 
Diz ainda:
 
- Faço um cinema que desconfia. Em momento algum manipulei a história para que ela se adaptasse as minhas convicções. Jamais levei o espectador pela mão feito criança, pois a platéia é sempre mais esperta que o filme e o diretor juntos.
 
Em verdade o que fica depois de 40 anos de seu lançamento é um filme ainda não envelhecido, ousado para a época e que se não abordou todas as matizes e implicações políticas pelo menos descortinou um pedaço da nossa história que poucos se atreveram a contar, tanto em fotograma quando em literatura. Por isso só "Aleluia Gretchen", ainda respira.
 
 
 
Tópicos:
 
- Elenco: Carlos Vereza, Lílian Lemmertz, Mírim Pires, Sérgio Hingst, Selma Egrei, Kate Hansen, Elizabeth Destefani, José Maria Santos, Abílio Mota, Lala Schneider;
 
- Prêmios em Gramado, Troféu APCA como Melhor Ator (Sérgio Hingst), Melhor Fotografia e Melhor Roteiro; Prêmio Air France de Cinema como Melhor Diretor e Melhor Atriz (Míriam Pires); Prêmio Governador do Estado de São Paulo nas categorias Argumento, Fotografia e Cenografia (Ronaldo Rego e Marcos Carrilho); Prêmio Coruja de Ouro do Instituto Nacional de Cinema como atriz (Míriam Pires), Figurino (Luís Burrigo) e Fotografia; Prêmio Enbrafilme: Prêmio Moliére nas categorias Diretor e Atriz (Míriam Pires) e Prêmio Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro na Categoria Diretor.;
 
- Coprodução e Distribução Engrafilme;
 
- O tema de abertura "As Cavalgadas das Valquírias", de Wagner, é tocada em arranjos distorcidos por "O Terço".
 
 
 

"O DIA EM QUE A TERRA PAROU'' DE 1951 SE COLOCA PAU A PAU COM ''2001'' DE KUBRICK E ''ALIEN O 8º PASSAGEIRO'' DE SCOTT

 
Robert Wise já era um nome considerável em Hollywood quando em 1951 dirigiu "The Day The Heart Stool Still" (O Dia em que a Terra Parou). Já tendo realizado "The Set-Up" (Punhos de Campeão), em 49, onde mostrou o lado sombrio dos ringues, "The Body Snatcher", (O Túmulo Vazio), em 45, onde administrou a briga de egos de Boris Karloff e Bela Lugosi e "The Curse of the Cat People", (A Maldição do Sangue da Pantera), em 44, este então jovem realizador de Indiana, gostou do roteiro de Edmund H. North sobre um conto de Harry Bates, "Farewell do the Master", publicado uma década antes.
 
Considerado um dos 3 melhores filmes de ficção de todos os tempos, entre eles "2001: Uma Odisséia no Espaço", de Kubrick e "Alien o 8º Passageiro" de Ridley Scott esta produção da Fox realmente disse a que veio. Com cenas antológicas conta a chegada a terra e o pouso na cidade de Washington de uma nave comandada por Klaatu (Michael Renniel) e seu escudeiro robô, um achado de impacto inigualável dentre os filmes do gênero devido a seu biotipo imponente, assim como o foi o robô Maria de Metrópolis, de Fritz Lang, de 1927. Aliás, os efeitos especiais para uma produção da década de 50 são um primor de competência e certamente influenciou uma dezenas de produções posteriores.
 
O filme mostra uma mensagem pacifista ainda mais em época de uma iniciante e temida guerra-fria pós 2ª Guerra Mundial. E nela o capitão Klaatu, representante da Federação dos Planetas, pretende se reunir com os líderes mundiais da terra para advertí-los sobre os perigos de uma guerra total, o que seria desastroso para o sistema interplanetário. Só que sua presença não é bem vista por aqui, principalmente para o exército americano que passa a perseguí-lo como um invasor perigoso.
 
 
Filmado em preto e branco, o tema da intolerância entre nações e o desenvolvimento bélico desenfreado capaz de ameaçar o futuro da espécie humana é muito bem desenvolvido aqui. Mesmo tendo por fundo um possível confronto nuclear entre a então União Soviética e os Estados Unidos foi o melhor dentre muitas outras produções a utilizar o mote guerra fria. O próprio Kubrick o faria em "Dr. Fantástico", em 64 e Don Siegel em "Vampiros de Almas", em 56.
 
Mas o filme carregou menos na questão política e colocou-se mais como uma crítica social, até porque os ânimos ainda não estavam tão acirrados no início dos anos 50 como aconteceria uma década depois. O que fica é que "O Dia em que a Terra Parou" tem um valor cinematográfico e também humano que se coloca acima da média e o remete além de seu tempo como obra do gênero, até porque os humanóides, como demonstram os conflitos recentes, tem pouca aptidão para evoluir e o contrário é o que mais fica explicitado, ou seja, a nossa incontrolável belicosidade.
 
 
Tópicos:
 
  • Elenco: Michael Rennie, Patricia Neal, Hugh Marlone, Sam Jaffe, Billy Gray, Frances Bavier, Lock Martin;
  • Roteiro: Edmund H. North, baseado na obra de Harry Bates;
  • Trilha Sonora: Bernard Hermann;
  • Produção: Estúdios Fox;
  • O filme teve alguns jornalistas da época interpretando a si mesmos como Drew Person e Gabriel Heatter;
  • Em 1954 houve a primeira refilmagem "Stranger From Venus" e em 2008 outro, com o mesmo nome, com Keanu Rivers;, ambos fracos;
  • O diretor Robert Wise que mais tarde faria os excelentes "Ratos do Deserto", 63, "Marcado pela Sarjeta", 56, "Amor Sublime Amor", 61, "O Enigma de Andrômeda", 71 e "Jornada nas Estrelas - o Filme", em 79, era um estudioso em assuntos alienígenas e acreditava na existência dos mesmos.
 

 

MUITO ANTES DA FAMA, BERGMAN JÁ ERA......BERGMAN

 
Filmado em 1953, "Noites de Circo" faz parte da denominada primeira fase do diretor sueco. Fase esta que a crítica nunca levou muito a sério já que somente dois anos depois desta produção é que o diretor sueco seria premiado em Cannes por "Sorrisos de Uma Noite de Verão".
 
Mas se olharmos com maior profundidade podemos afirmar que "Noites..." é um grande filme, assim como "Monika e o Desejo", filmado no mesmo ano, um pouco antes. A película foi execrada e permaneceu fora de circuito por longo tempo e só redescoberto muito depois. Sei lá porque acontece isso. Talvez devido ao conservadorismo de uma sociedade não muito acostumada com os rompantes estéticos do sueco. Talvez o aspecto político-social em que o filme se insere ao contar a história do decadente circo Alberti e seus desajustados e inconvenientes artistas que chegam na cidade natal de seu diretor.
 
Alberti é um homem cansado da estrada, da miséria, da falta de perspectivas, de seus fracassos, de sua vida. Deseja rever a mulher e o filho que deixou pra trás por uma vida no picadeiro. Bergman nos apresenta isto como contraponto entre o circo e a companhia teatral que se apresenta na cidade. Esta, com sua soberba, com seu desdém, menospreza a trupe circense até um grau de violência física e psicológica.
 
Aqui temos cenas antológicas como a inicial quando o palhaço resgata sua esposa que nada nua perto de onde uma companhia militar pratica exercícios de tiro. É de uma crueza de doer na alma vê-lo carregar até a exaustão sua esposa em seus braços. Não é apenas um corpo de mulher que está alí mas sim a sua dignidade e seu respeito perante os companheiros. A outra cena é quando Alberti, em pleno picadeiro, desafia o amante recente de sua jovem companheira para uma briga. É brutal como ela nos é mostrada.
 
Tem destaque nesta produção as pinceladas expressionistas que perpassam por todas as cenas. Cenários sombrios, diálogos embrutecidos e interpretações desglamourizadas. Aliás, é bom frisar que Bergman foi um dos maiores mestre na direção de atores. Sempre trabalhou de um modo a extrair tudo o que podia e não podia tanto de nomes renomados como de meros protagonistas.
 
Foi também a primeira vez que trabalhou com Sven Nykvist, fotógrafo que entrou na mente do diretor ao conseguir colocar em suas lentes toda a dramaticidade requerida. Seus claros e escuros é uma obra-prima à parte, assim como a busca da luminosidade adequada a cada cena. Foi aquele que mais esteve em sintonia com os anseios do mestre.
 
O filme tem hoje, muito tempo depois, uma legião de admiradores entre eles Woody Allen que se imprressionou ao ver "Noites de Circo' em sua juventude. Ficou fã de carteirinha assim como Scorcese, David Lean, Renais, só para citar alguns.
 
Bergman conta que foi num período não muito bom de sua vida que escreveu "Noites...". "Foi num acesso de profunda misantropia".
 
Outra presença que marca a produção é a de Harriet Anderson, que já havia feito "Monika e o Desejo" no mesmo ano. A atriz é de um carisma e capacidade de interpretação que a colocaram como uma das musas do diretor, tanto quanto seria nos anos 60 Liv Ullmann.
 
Harriet também trabalhou com Ingmar em "Uma Lição de Amor", em 54, "Sonhos de Mulheres", em 55, "Sorriso de Uma Noite de Verão", também em 55, "Através de Um Espelho", em 61, "Para Não Falar de Todas Essas Mulheres", em 64 e viria mais tarde a trabalhar no cinema americano com Sidney Lumet e outros. Esteve também na produção de Lars Von Trier "Dogville" mais recentemente. Uma verdadeira diva tanto do mestre quanto daqueles que acompanharam sua carreira.
 
Pra encerrar "Noites de Circo" é de uma dignidade como poucos filmes conseguem traduzir. É também amargo, angustiante, e uma prova de amor ao cinema. Aqui, muito antes da fama de "Morangos Silvestres", "Persona", "Cenas de Um Casamento", "O Ovo da Serpente", Bergman já era Bergman.
 
 
 Tópicos:
 
  • Roteiro e direção de Ingmar Bergman;
  • Música: Karl-Birger Blomdahl;
  • Elenco: Harriet Anderson, Gunnar Bjornstrand, Hasse Ekman, Ake Bronberg, Anders Ek;
  • Lançamento: 14 de Setembro de 1953, na Suécia;
  • Fotografia: Sven Nykvist;
  • O filme estáz disponível no You Tube com legendas em portugues assim como "Monika e o Desejo" e vários outros filmes da primeira fase do mestre sueco.
 

EM 'El ARTISTA Y LA MODELO' TEMOS A BELEZA POR PRINCÍPIO, O PICTÓRICO COMO MEIO E A SENSIBILIDADE COMO FIM

 
Pouco conhecido no Brasil já que distribuidores não vêm em seus filmes material atrativo comercialmente, o espanhol Fernando Trueba de vez em quando surpreende com obras como  "El Artista y la Modelo", produção de 2012 e que arrabatou críticas favoráveis quando de sua exibição no Festival de San Sebastian.
 
Primeiramente porque Trueba situou seu filme na França estão ocupada pelo nazismo. Segundo por contar a história de um escultor chamado Marc Cros então já velho mas ainda em busca da beleza suprema que procura no corpo de uma mulher e terceiro pela maneira como esta história nos é contada.
 
Aqui, a guerra é um elemento que ronda mas não interfere. Que se mostra mas não altera o cotidiano. Trueba torna através da delicadeza de suas imagens sua história muito além da relação artística ou mesmo profissional. E o que nos apresenta e permeia em sua câmera é o olhar que percebe, que indaga, que busca o belo em sua forma mais pura, como um legado de Deus, uma compulsão na vida avançada do velho escultor.
 
Filmado em preto e branco Trueba dimensiona seu material de uma delicadeza que eleva sua obra ao mesmo nível de seu personagem. Os diálogos entre o artista, o excelente Chus Lampreáve e sua modelo, Ainda Folch, são permeados de rispidez, profundidade, devoção e por outras,  profundamente platônico.
 
O filme embora não tenha uma confirmação histórica narra uma história real que uniu o escultor francês Aristides Maillol, que viveu no século XIX e sua modelo Dian Vierny, que nunca cansou de reivindicar a abra do artista a quem havia emprestado seu corpo.
 
O que mais sobressai aqui é que quem aproxima os dois é a mulher de Marc Cros, personificada por Cláudia Cardinale, envelhecida mais de uma beleza serena e impactante. Já tendo sido modelo do marido é ela quem enxerga na jovem não a rival, mas àquela que ele procura para continuar seu trabalho. E o faz de forma sutil, despojada, como que sabendo que ao deixar os dois sozinhos está ajudando seu marido em sua incansável busca.
 
Embora possa parecer um tanto irracional é nesse foco que o filme tem uma dimensão artística de elevação. Também contribui as locações que nos remetem aos anos 40. É uma velha casa de pedras no alto de uma colina, cercada de mato e não muito distante da casa principal. É ali, no casulo, que o velho escultor e sua jovem espanhola refugiada tem, cada um a sua maneira, suas necessidades expostas. O culto artístico de um e a falta do mesmo de outro é que da forma ao tema, assim como nas esculturas do velho e na vivência de ambos. Eles se completam até mesmo como elemento sexual, embora no filme isto seja mostrado de uma forma natural. 
 
A relação do escultor com o comandante nazista que conhece sua obra é sempre artística, polida, respeitosa e nunca política. Por outro lado a atração que a jovem,  que frequentemente caminha nua, exerce sobre os meninos da redondeza reveste-se de uma delicadesa quase pictória mas é nesse arquétipo da descoberta do sexo na puberdade, que Trueba traça uma linha com a descoberta ou o renascimento sexual de seu personagem principal.
 
Um dos momentos marcantes do filme é quando o velho diz a jovem qual o conceito da beleza absoluta. Conta uma história em que Deus primeiro fez a mulher na sua plenitude e que não tendo mais o que fazer, fez o homem.
 
Embora não tendo sido escolhido para representar a Espanha no Oscar, com certeza é um filme intenso, honesto em suas idéias, e que se mostra coerente, cativo e pertinente ao nos enlevar em um mundo de beleza e sensibilidade.
 
 
 
Tópicos:
 
  • Elenco: Jean Rocheford, Aida Folch, Claudia Cardinale, Chus Lampreave, Gotz Otto, Christian Sinniger;
  • Roteiro: Fernando Trueba e Jea-Claude Carrière;
  • Produção: Fernando Trueba;
  • fotografia: Daniel Vilar;
  • Montagem: Marta Velasco;
  • Distribuidora: Alta Classics;
  • O diretor já ganhou em Oscar de melhor filme estrangeiro em 1993 com o filme "Belle Époque". Conta em sua biografia 28 produções entre eles o escelente documentário "Calle 54", sobre artistas latinos de jazz.
  • O filme está disponível no You tube.
 

 

EM "O PASSAGEIRO: PROFISSÃO REPÓRTER" ANTONIONI MOSTRA MUITO MAIS DO QUE VOCÊ VÊ

 
Para penetrar no universo do Michelangelo Antonioni é preciso estar aberto e atento a tudo. Isso porque o cinema do mestre italino é profundo, avesso a circunstâncias temporais, emocional, contemplativo e realista.
 
E é um cinema para ser descoberto pelas novas gerações até porque Antonioni nunca fez concessões de qualquer tipo. Conhecido pela sua famosa "Trilogia da Incomunicabilidade", que abrange "A aventura", (1960), "A Noite", (1961), e "O Eclipse", (62) também assinou outras produções que fizeram a cabeça de uma legião sem fim de seguidores e críticos: "Blow-Up" (1966), "Zabriskie Point", (70) e "O Passageiro....". Michelangelo nunca gostou de rótulos ou gêneros classificatórios por parte da crítica. Dizia que seus personagens apenas se esforçavam para estar em contato uns com os outros. 
 
Filmado no deserto argelino, Alemanha e Barcelona "Profissão Repórter", produção de 1975 é um rebento que mostra o que o diretor tem a dizer. Na história, o jornalista David Locke (Jack Nicholson) está na Argélia filmando um documentário sobre guerrilheiros da região. Só que isto é o tema secundário porque o principal é que David está de saco cheio de tudo: de seu trabalho, sua mulher, seu chefe, sua vida, da areia do deserto e outros senões que tornaram sua existência insuportável, instável e cansativa.
 
No hotel em que se hospeda, se é que dá pra chamar esta espelunca de hotel, encontra outro hóspede de nome Robertson (Chuck Mulvehill), um viajante inglês. Acontece que o sujeito é muito parecido com ele e um dia qualquer tem um ataque fulminante e morre. David vê aí a saída que buscava para sua crise existencial  e toma a identidade do defunto. É aí que o filme decola. Alça vôos inimagináveis. É onde Antonioni mostra todo seu conhecimento sobre sua arte.
 
 
 
O filme passa a  mergulhar num registro psicológico que nos leva a acompanhar uma história de suspense, fuga, medo e tensão. Torna-se uma espécie de road-movie, aqui com outro personagem que chama atenção. A da joven estudante de arquitetura interpretada por Maria Schneider. É ela que tenta colocar um pouco de ordem na caótica vida de David. Pois o que o então repórter não contava é que sua nova identidade é de um conhecido traficante de armas procurado em vários países.
 
Além de várias cenas com políticos reais de republiquetas africanas tem uma cena antologica que é a execução real de um prisioneiro político. O diretor conseguiu as imagens de algum governo da região. E é uma cena chocante pela friezea com que é mostrada.
 
Aliás, cada cena tem um significado, uma história, uma sutileza. Nada é burocrático. É um exercício estético e  ao mesmo tempo auto-reflexivo ao extremo, de formatação e sentido objetivos. E como não poderia ser somente isso, Antonioni fecha sua histórica com uma plano-sequência final de tirar o fôlego, que fez história dentro da filmografia moderna. Embora  houvesssem outros tantos, como por exemplo o de Orson Welles em "A Marca da Maldade" ("Touch of Evil"), de 1958, nunca uma sequência disse tanto com tão poucos elementos. Durando mais de 7 minutos toda a dita incomunicabilidade de Antonione cai por terra e o que aflora é exatamente o contrário. É como se o mundo parasse ao mesmo tempo que cenário fala através dos seus pequenos atos cotidianos. É a imagem junto com o som que nos mostra muito mais do que realmente vemos e sentimos. É no mínimo intrigante e contemplativo e que deixa no ar uma aura de perplexidade.
 
Haaa...com certeza é um grande filme. Disso não tenho dúvidas.
 
 
Tópicos:
 
  • Elenco: Maria Schneider, Jack Nicholson, Jenny Runacre, Ian Hendry, Steven Berkoff, Ambroise Bia, Chuck Mulvehill;
  • O filme inclui cenas com declarações de políticos sobre a situação da África;
  • História original e roteiro de Mark Peploe.
  • Produção executiva: Miguel de Echarri e Alessandro Von Normann;
  • Montagem: Antonioni e Franco Arcalli:
  • Produção de Madri, Roma e Paris.

'VIDAS SECAS' É O ELO ENTRE  GRACILIANO RAMOS E O 'CINEMA NOVO"

 
Foi no romance "Vidas Secas" de Graciliano Ramos, publicado em 1938, retratando a vida miserável de uma família de retirantes açodados pela seca que Nelson Pereira dos Santos foi buscar elementos para o seu longa rodado em 1963 e indicado ao Palma de Ouro no Festival de Cannes no ano seguinte.
 
Filmado em Minador do Negrão e Palmeira dos Índios, sertão de Alagoas, a produção se tornou um marco dentro da filmografia realista brasileira. Em verdade o cineasta se manteve o mais fiél possível ao livro, tanto no apuro estético quanto à temática abordada, e mesmo tendo já se passado 53 anos ele continua atual.
 
Elencou de forma contundente o movimento que viria a se denominar de Cinema Novo e que revolucionou a arte cinematográfica brasileira encabeçado então pelo irriquieto, irreverente, prolíxico e "enfant-terrible" Glauber Rocha.
 
É nu e cru, com diálogos curtos e reticentes, uma música que mais parece uma punhalada na alma e enquadramentos de câmeras onde a rudeza do sertão é o elemento pictórico fundamental. É quase minimalista, áspero, desumano e ao mesmo tempo natural.
 
Narra a saga de uma família retirante formada por Fabiano (o ótimo Átila Iório), Sinha Vitória, os dois filhos e um cachorro chamado Baleia (que inclusive quase causou um problema internacional que narro nos tópicos) e um papagaio, que já de início é sacrificado para saciar a fome da família, pois como disse Sinha "não sabia nem cantar mesmo".
 
 
Aqui temos a relação de dependência que o homem tem da terra, mesmo quando esta quase nada lhe dá. E isto torna os personagens tão secos quanto aquela. A desesperança é o elemento que conduz a narrativa. As relações que permeiam os protagonistas são tão ou mais áridas que o seu meio. A sobrevivência é possível graças a teimosia em se manter como tal. O sol, a terra, e todos os elementos naturais não dão trégua. Sinha tem um sonho: dormir numa cama de couro e também com os filhos na escola, para terem uma chance na vida. Fabiano é manipulado pelo patrão, pelos deconhecidos que encontra pelo caminho, pela polícia que o açoita para aprender sobre respeito a farda. E mesmo assim sonha em não ser subserviente, em ser livre em não depender de patrões.
 
Nelson Pereira vinha em uma carreira ascendente com "Rio 40 Graus", de 55, "Boca de Ouro", de 62 e já tinha um estilo que prenunciava o tal de "cinema novo" pois ao contrário de seus colegas da época, preferia mostrar um Brasil que poucos conheciam: os flagelados, favelados, a seca, os despossuídos, os retirantes, em contraste com as praias ensolaradas, o Rio de Janeiro e seus cartões-postais das versões oficiais.
 
E isto já aparece em seu primeiro filme rodado em 1950, o documentário "Juventude", que mostra jovens operários em São Paulo e que foi feito para representar o Brasil num festival em Berlim.
 
Vincent Canby, crítico do New York Times escreveu que "o filme é tão absoluto, tão desesperançado que é não somente um estado de ser, mas também algo tão incompreensível como outra dimensão no tempo" e acrescentou ainda que é "uma chamada para as armas" para combater a pobreza descrita na obra.
 
Mesmo sendo sucesso de crítica, "Vidas Secas" não foi entendido pelo público em geral, até porque era uma temática regional pouco conhecida nos centros mais desenvolvidos. A verdade é que dificilmente uma adaptação foi tão fiel a uma obra literária como esta. Nelson teve um olhar profundo e pontual sobre a essência de Graciliano mostrada de forma tão cabal e clássica sobre os confins desse imenso contimente chamado Brasil. É uma obra que para sempre se manterá intacta, atual e histórica.
 
 
Tópicos:
 
  • Elenco: Átila Iório, Genivaldo Lima, Gilvan Lima, Jofre Soares, Pedro Santos, Maria Rosa, José Leite e Antonio Soares;
  • Roteiro: Nelson Pereira dos Santos;
  • Música: Leonardo Alencar;
  • No Festival de Cannes, na França, a crítica ficou tão abismada com a cena em que a cachorra Baleia foi morta a tiros que os produtores tiveram que levar a mesma para acalmar os ânimos franceses. A partir dalí ela também passou a ser estrela e onde o filme era apresentado lá estava a irreverente Baleia.
  • Foi o único filme brasileiro a ser indicado pelo British Film Institute como uma das 360 obras fundamentais em uma cinemateca.
 

 

 

O MUNDO DE BÉLA TARR; UMA EXPERIÊNCIA SENSORIAL DIFERENCIADA

Veja o trailer:

O cinema do húngaro Bela Tarr não é pra qualquer um, talvez pra um ou outro qualquer ou quem sabe uma meia dúzia de cinéfilos inveterados, fora isso...... humm.... não sei não. Se você tem um certo conhecimento, mesmo que empírico, de cineastas do leste europeu talvez consiga ficar até o final de seus filmes, alguns com até 4 horas de duração, outro com 6, outros menos. Agora se conseguiu ir até o fim terá, no mínimo, uma experiência, digamos assim, inusitada.

Cineasta contemporâneo de não muitos créditos, 15 entre curtas e longas, Bela não faz concessões, nem a ele mesmo, já que com "A Torinói Ló" (O Cavalo de Turim) deu adeus a sua não tão curta e não tão longa densa história cinematográfica, que mesmo espaçada mostrou um universo unilateral, intrínsico e ao mesmo tempo realista.

"Não tenho mais nada a dizer", disse em uma de suas últimas entrevistas: "não dá mais. Não há dinheiro, não há hipóteses. Chegou a hora de encarar a realidade: todos os meus sonhos se esfumaram. Não tenho como pagar as pessoas, não tenho como pagar coisa alguma. Acabou". 

Vencedor do Urso de Prata do Festival de Berlim de 2012 esta produção dividida entre Hungria, França, Alemanha e Suíça e EUA não é fácil de digerir. Assim como não o foi aquele que é considerado sua obra-prima, "Satantango", segundo muitos críticos um dos melhores filmes de todos os tempos. "O Cavalo de Turim" é radical de cabo a rabo. São 146 minutos de uma experiência metafísica e onírica única, permeada por planos sequências repetitivos, meticulosamente elaborados, uma densidade dramática beirando quase que ao teatro realista russo, e uma história que se mostra instigante e coerente.

Temos aqui uma relação entre pai e filha morando numa velha casa de pedra em meio a um lugar inóspito e longe de qualquer civilização. É uma família miserável, que repete seu cotidiano miserável. Levantam-se cedo, a filha veste o pai, vai ao poço buscar água, cozinham as batatas que vão comer, alimentam o cavalo no estábulo, limpam o lugar, voltam a seus pequenos afazeres (olhar a paisagem, colocar lenha no fogão), voltam a dormir, levantam cedo, a filha veste o pai..........

Esse cotidiano repetitivo pode até parecer enfadonho, porém o tratamento de longos planos sequências, de composição prepostas pelo diretor torna-se um verdadeiro exercício de estilo. A cada plano Bela vai adicionando um novo elemento, pode ser uma janela, um quadro, uma porta. É uma obra sinfônica de notas que vão se agregando, formando matizes e cores (embora o filme seja em preto-e-branco, aliás, como toda a filmografia do diretor)  dando conotações sublimes e etéreas as imagens trabalhadas.

"A Torinói Ló" poderia até ser classificado como um filme mudo já que não há uma palavra trocada ente pai (Janós Derri) e sua filha (Erika Bók). A única voz que ouvimos é a do vento incessanta que castiga aquelas paragens. Tudo isso é quebrado apenas uma vez pela visita de um vizinho que durante cindo minutos discorre sobre os mais elementares significados de sonho e realismo sobre o papel do homem frente a Deus.

O primeiro plano sequência do filme é de uma beleza ímpar. Temos aqui uma ditação de uma passagem que teria sido presenciada pelo filósofo alemão Nietzche em 1889 em Turim ao avistar um cavalo sendo chicoteado por seu dono. Pois este é o mote que Bela Tarr usa na transição desta idéia como seu filme. Aqui o cavalo é um fator emblemático, uma metáfora do que está por vir. 

É perceptível ao pai e a filha que o seu cotidiano bem como suas expectativa se deterioram a cada dia. Estes sinais são percebidos na visita do vizinho, e principalmente na troupe de ciganos que passam pela velha casa num ritual blasfemo e provocativo.

Dividido em seis partes o filme vai elencando elementos que vão tirar a pequena família de sua diária modorrenta. O poço seca de repente, tudo é tomado pela escuridão. Não resta outra coisa a não ser fugir dalí. É como uma visão do fim do mundo, do final dos tempos. Tudo se torna insuportável: a casa, a comida, a relação, a própria vida.

E aqui é que a visão social de Bela Tarr sobre seu país se mostra mais pessimista. Os modelos políticos atuais não se sustentam. O capitalismo e mesmo o socialismo se esboroaram enquanto projetos sociais. A visão de Bela Tar é refletida na sequência final quando pai e filha rumam ao desconhecido e somem por trás de uma montanha enquanto a câmara fica parada no vazio do horizonte os vê retornar instantes depois como a dizer que onde foram também não existe saída. É o caos total.

Enfim, se você tá a fim de uma experiência de cinema real, denso para uns e tediosa para outros tantos o Cavalo de Turim se propoe a isso: é cinema de primeira, de talo e corte, ou como diziam os antigos, elitista até o medula. Aproveite. 

Tópicos:

  • Elenco: János Derzsi, Erika Bók e Mihály Kormos;
  • Fotografia: Fred Kelemen;
  • Música: Mihály Vig;
  • Roteiro: Lászlo krasnohorkai/Béla Tarr;
  • Em 2012 a sala P.F. Gastal mostrou uma retrospectiva com vários filmes do diretor húngaro;
  • Béla Tarr nasceu em 1955 na Hungria e estudou na Faculdade de Cinema e Teatro de Budapeste;
  • Alguns críticos classificam seus filmes como "cinema remodernista";
  • O Cavalo de turim foi escolhido para disputar o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2012, porém não foi indicado pela academia;
  • O diretor disse que seu filme é sobre "o peso da existência humana";
  • Foi indicado também ao Urso de Ouro.

WOODSTOCK - ONDE TUDO COMEÇOU...... E TERMINOU

 
 
 
Eram pouco mais de cinco horas da tarde do dia 15 de agosto, sexta-feira quando o microfone anunciou: "Mr. Richie Havens". O músico, com uma longa túnica, suado,  se dirigiu até seu banquinho à frente do imenso palco onde o aguardavam seus dois acompanhantes já esmerilhando seu violão. Sentou-se, deu uma palhetada em todas as cordas, ajustou a afinação e mandou "Handsome Johnny" a primeira música do festival daquele ano de 1969. Filmado de baixo, com a câmera quase a seus pés e sem a parte de cima da dentadura ("me dava um timbre melhor na voz", declarara o músico anos depois) foi algo tão fora dos padrões que elevou a  sensibilidade de uma platéia estimada, assim no chute, de 400 a 500 mil pessoas. Um horizonte de pessoas, a maioria jovens, de todas raças, credos cores possíveis e todos os amores que alí se produziu, fez urdir o seu som, batendo palmas, e acompanhando o rítmo ensandecido da batida do violão.
 
 
 
 
O mundo compreendeu o que realmente ocorreu alí somente dois anos depois, em 1971, quando o diretor Michael Waldleigh lançou  "Woodstock - Onde Tudo Começou", que inclusive ganhou um Oscar naquele ano. E o que ele mostrou causou "frisson" em meio mundo que viu e não esqueceu. Não só a parte musical onde desfilaram o que de melhor o rock fazia naquele ano como  Ten Years After, Sly And Family Stone, a primeira reunião de Crosby, Stil & Nash, Joan Baez, então grávida de sete meses, The Who e muitos outros. As imagens captadas alí fizeram a cabeça de toda uma geração então alheia ao acontecimento.
 
Em meio a calamidades político-sociais como a morte de Martin Luther King e Robert Kennedy, a Guerra do Vietnã começando, o festival serviu como um descarrego de toda uma juventude berrando contra o sistema. Grupos políticos, gays, negros, brancos, religiosos, hippies, enfim, um caleidoscópio de vozes e matizes bradando contra o 'status quo" vigente à época já dando ares de exaustão. E nada melhor do que a música como vazão. E tava tudo lá. Em meio a chapados viajandões de LSD, depoimentos de jovens casais clamando por justiça, desempregados sem perspectivas, minorias perseguidas por grupos dominantes, era uma mescla interessante de uma nova ordem social. E tudo mostrado, quadro a quadro.
 

Um dos elementos que deram o tom do documentário foram as filmagens do público. O diretor pediu a quatro equipes que saissem em meio a multidão filmando tudo que pudessem e entrevistando os personagens mais bizarros que circulavam pelos  arredores da fazenda de Max Yasgur, pacato cidadão da cidade de Bethel, então com 2.500 habitantes na época. O que pouca gente sabe é que de Woodstock ficou apenas o nome, porque este lugar nos arredores de Nova York foi cogitado mas não usado pelos idealizadores John Roberts, Joel Roserman, Artie Kornfeld e Michael Lang.

"Ainda tentamos resolver um enigma: o que fez tanta gente ir até Woodstock", brincou Rosenman, que definiu o show como "o paraíso, apesar das filas, das aglomerações, da chuva e do barro". As cenas mostrando a pequena cidade invadida por um bando de jovens famintos e sedentos é qualquer coisa de hilário. A cara dos habitantes locais, velhos com suas esposas, policiais e  políticos, opinando sobre o que acontecia alí é o que de melhor o documentário nos mostra. É como se fosse uma invasão alienígena, um choque de cultura e de opiniões sobre sexo e drogas comendo solta.

Roberto Medina, um dos responsáveis pelo Rock in Rio diz: "fiquei amigo de Michael Lang e ele me contou que o festival teve um grau de improvisação muito grande. Eles queria fazer uma festa, mas a coisa foi crescendo, foram convidando mais gente, até que eles tiveram que buscar um lugar grande, uma fazenda para montar o evento. Ninguém sabia alí  que ia ser algo daquela dimensão".

A Maior parte do público pagou US 18 dólares (35 reais a época) para assistir 32 apresentações. Só que a certa altura as cercas foram derrubadas e mais da metade entrou sem pagar. Bom, como disse um dos organizadores, do ponto de vista financeiro foi um fracasso total. Mas no aspecto de projeção nem se fala. Jon Pareles, crítico do New York Times, que estava lá diz: "Woodstock deu a praticamente todos os envolvidos - público pagante, gente que invadiu o evento, músicos, médicos, polícia - um senso de troca de humanidade e cooperação. Durante aquele fim de semana as pessoas trataram os outros com gentileza.

E no palco o som corria solto. Já no segundo dia quando a banda de Joe Cocker iniciou a introdução de "Whit a Little Help From My Friends" e o músico começou a fazer gestos no ar como se estivesse tocando um baixo imaginário se contorcendo como um deficiente físico com espasmo o mundo tomaria conhecimento de uma das mais impactantes atuções em cima de um palco que se tem notícia. A insossa canção dos Beatles foi desconstruída totalmente e nascia alí uma espécie de espamo sonoro que devido a seu arranjo arrojado e a voz enrouquecida do cantor britânico elevou o clima da platéia a uma orgia idiílica e metafísica. O cantor bem que tentou, mas nunca mais, como diria anos depois a um jornalista irlandes, conseguiu igualar. "Eu estava totalmente em transe. Alcancei agudos que nunca tinha feito antes. A música entrou por debaixo da minha pele e tomou conta de mim. Nunca mais consegui a energia que tive naquela tarde", disse o músico.

With a Little Help of My Friends:

Toda a estrutura montada foi por água abaixo, literalmente, quando após a apresentação de Cocker desabou um temporal que quase põe tudo a perder: de palco a torres de som e luz. O pessoal que não tinha barraca, a maioria, já encharcados e sujos não teve outra coisa a fazer a não ser se divertir no barro. E sempre atentos a tudo tinha uma equipe filmando e  entrevistando. Uma delas mostrava o limpador dos banheiros químicos dizendo: "tô até gostando, pois um filho meu tá aqui. O outro não, tá no Vietnã lutando". Em meio a floresta, tomando banho nos rios grupos de jovens brincando nus mostrou ao mundo o que se pode fazer quando as idéias na cabeça são de "3 Dias de Paz e Música", o slogan criado pelos organizadores.

Eram 4 horas da madrugada do dia 16 de agosto de 1969 quando Pete Townshend, Keith Moon, John Entwistle e Roger Daltrey,  integrantes do The Who,  subiram ao palco para iniciar seu show, aquele que, sem saber, seria o maior evento dentro da história da banda. Keith  já havia dado umas baquetadas na sua batera, Pete já fizera alguns minutos antes alguns acordes para testar o som. Mas Quando o quarteto britânico introduziu "My  Generation" , em cima do palco, dando ordens a alguns de seus 70 funcionários, o diretor Waldleigh, andava de um lado para outro tentando captar o melhor ângulo. Coisa que desagradou Townshend que já deu uma "guitarrada" num câmera dizendo que ninguém ia filmar nada. Ora, naquela época o pessoal nem sequer se lembrou de pedir permissão aos músicos ou agentes para as filmagens. O jeito foi filmar de longe, com as equipes instaladas em frente ao palco, no escuro, nos lados e assim foi feito. Tentando colocar ordem no caos o jovem assistente de direção Marty (Martin Scorcese), fazia o possivel para orientar o pessoal das câmeras a como proceder e não perder nada. E tudo no improviso, sem preparação.

Faltou de tudo. Comida, água, cobertores. A comunicação era precária. Longas filas nos orelhões esperavam horas para conseguir falar com algum familiar. O jeito foi voltar ao centro da pequena cidade e pedir aos moradores locais. E estes aturdidos, ajudaram como puderam os esfomeados. O movimento foi tão grande que provocou imensos bloqueios na Via Expressa do Estado de Nova York e transformou Bethel em área de calamidade pública. Apesar do clima Paz e Amor ocorreram 2 mortes. Uma por overdose e outra por atropelamento.

Entre as 32 bandas que se apresentaram algumas tiveram o privilégio, ou sorte, ou seja lá o que for, de se tornarem famosos do dia pra noite. E uma delas foi o grupo de San Francisco Santana Band, então com um disco lançado naquele ano e que tocou com tanta energia que fez a platéia levantar e bater lata, pedaços de pau, panelas, pé e mãos, ou o que fosse para acompanhar a cozinha rítmica do sexteto. A banda ficou conhecida como um autêntico filho de Woodstock, ainda mais quando na montagem Scorcese mostrou toda a sua genialidade ao separar a tela em quadros diversos cada um mostrando uma imagem, e todas elas sincronizadas com a música. Isso causou um impacto tão grande que virou uma espécie de regra para inúmeros filmes de rock pós-Woodstock. Em  "Songs Remains the Same", do Zeppelin isso foi usado quase a exaustão. Aliás, Scorcese sempre gostou de filmar shows de rock. Anos depois faria "The Last Waltz", despedida do The Band e mais recentemente "Shine a Light", dos Stones e anos antes explorou o blues numa série para a TV chamada "The Blues".

Soul Sacrifice:

Existem cenas memoráveis como aquela em que o músico John Sebastian, chapado até a medula, para de cantar e mostra para o público aquele que seria o primeiro bebê nascido no evento, como se fosse o nascimento de uma nova era, de descoberta de consciências, de abertura de horizontes políticos, de reivindicações de comunidades auto-sustentáveis baseadas numa melhor distribuição de alimentos, de troca de favores, de protestos contra guerras inúteis, como provou ser a do Vietnã, que então iniciava. Era o movimento que viria a se denominado de contracultura.

Claro que o pessoal ficou chocado com as cenas de drogas consumidadas livremente. Isso jamais havia sido mostrado dessa forma. Existiam alguns "gurus" que apareceram no documentário ensinando como fechar um baseado, como fazer uma melhor viagem de LSD, como melhorar sua respiração através da técnica da Kundaline. O fumo correu solto, mas o interessante é que provocou um debate sadio tanto de parte dos participantes como dos críticos do pós-evento. Mas os "3 Dias de Paz e Música" ficou para sempre na memória de quem viveu e de quem viu. 

O evento fechou com Jimi Hendrix, já no dia 18 de agosto, para um público de menos de 2 mil pessoas, pois não conseguiu chegar antes. Mas o som que ele tirou de sua guitarra ao tocar o hino americano, cheio de efeitos e feed-backs, ora parecendo aviões em rasantes, ora bombas caindo do céu em explosões espaçadas ficou como um réquiem de alguém que dava adeus a um mundo caótico, uma mensagem emblemática de como os homens deveriam conviver dentro de um mundo tão conturbado, até porque o músico morreria no ano seguinte. "Hey Joe" fechou o festival.

Quando o concerto acabou o diretor pegou os 125 quilometros de filme, alguns deles chegado as pressas, de helicóptero durante o evento e levou mais ou menos dois meses para editar tudo, já que som e imagem não estavam sincronizados. É ele quem diz: "Eu fui lá e comecei a filmar como se aquilo fosse uma guerra. Vi alí que muitos dos nossos ideais não iriam vingar".

E como disse o crítico Chris Willman, do Los Angeles Times, "não só um excelente documentário que espelha os seus tempos, mas o filme definitivo sobre um concerto de rock".

Tópicos:

  • Recebeu o Oscar de Melhor Documentário
  • Para comemorar os 25 anos do evento, 250 mil pessoas se reuniram no Woodstock 94, em Saugerties, a 135 quilometros de Nova York. Pagou-se 135 dólares para ouvir Nine Inch Nails, Aerosmith, Metallica, Green Day, Red Hot chili Peppers, Peter Gabriel, Santana e Joe Cocker.
  • Em 1999 ocorreu outra edição mas o espírito Paz e Amor foi deixado de lado devido a violência e tumultos supostamente incentivados por bandas como Limp Bizkit, Insane Clow e Kid Rock.
  •  Atlantic Records lançou junto com o filme a trilha musical em álbum duplo.

Tocaram no primeiro dia, sexta-feira, 15 de agosto:

  • Richie Havens
  • Sweetwater
  • The Incredible String Band
  • Bert Sommer
  • Tim Hardin
  • Ravi Shankar
  • Melanie Safka
  • Arlo Guthrie
  • Joan Baez

No Segundo, 16 de agosto:

  • Quill
  • Keef Harlley Band
  • Country Joe
  • John Sebastian
  • Santana
  • Canned Heat
  • Mountain
  • Greatful Dead
  • Creedence Clearwater Revival
  • Janis Joplin
  • Sly & Family Stone
  • The Who (as 4 da manhã)
  • Jefferson Airplane

Domingo, 17 de agosto para segunda-feira, 18 de agosto:

  • The Grease Band
  • Joe Cocker
  • Country Joe and the Fish
  • Ten Years After
  • Blood, Sweet & Tears
  • Johnny Winter e seu irmão Edgar Winter
  • Crosby, Stills nd Nash
  • Paul Buterfield Blues Band
  • Sha-Na-Na
  • Jimi Hendrix

Bandas Convidadas:

  • Beatles, John Lennon queria incluir a banda de Yoko Ono
  • The Doors, cancelou no último momento
  • Led Zeppelin, seu empresário Peter Grant não queria dividir a atenção da banda com outras
  • Jethro Tull
  • The Byrds, acharam que não seriam pagos
  • Bob Dylan, seu filho estava doente e mesmo morando em Woodstock se sentia incomodado  com su vizinhança hippie
  • Joni Mitchel
  • Tue Moody Blues

 "A ILHA DO MILHARAL" É PURA ARTE, TODO O TEMPO.... O TEMPO INTEIRO

 
Simindis Kundzuli (A Ilha do Milharal), de 2014 é, assim assim por cima, sem medo de errar, um dos melhores filmes que já aportaram por esta "terra brasilis" no ano de 2015. Esta produção compartilhada  entre a Geórgia, Alemanha, Cazaquistão, França e República Tcheca narra a empreitada de um velho (Tlyas Salman) que se apropria de uma minúscula ilha no rio Enguri que separa a Georgia, e a República Separatista da Abecásia, com a intenção de plantar milho e com a produto da colheita tirar o sustento da família nos meses subsequentes. E é num dos raros diálogos que mantém com sua neta de 13 anos (Mariam Butusishuil) que responde ao questionamento da menina sobre a posse desse pedaço de terra: "Esta terra é de seu criador. A terra dos georgeanos é aquela lá", diz ele apontando para a margem.
 
A construçáo do barraco do velho é a própria construção do filme: lenta, meticulosa, planejada, fazendo uso de todos os elementos que a natureza do entorno lhe proporciona, bem como o alimento que o rio lhe fornece.
 
Esses dois personagens, o avô e a neta vivem no meio de uma guerra que se lhes apresenta seguidamente através dos barcos com soldados armados que passam constantemente na ilha ou nos tiros que ecoam na floresta.
 
O diretor George Ovashvili constrói a obra apenas com estes elementos minúsculos mas que se tornam intensos quando confrontados com as tramas  que se apresentam. A semeadura da lavoura e o desabrochar da menina estão dentro de um mesmo registro alegórico. E tudo dentro de imagens contemplativas, mágicas, em grandes planos, com os elementos naturais fazendo parte da narração.
 
 
A necessidade do velho e sua neta se sobrepõe às questões do conflito. Estas são preementes, inadiáveis. A colheita tem seu ciclo e é preciso ser trabalhada. Aquelas são insolúveis, eternas, inegociáveis. Até porque a estação das cheias virá depois e a pequena ilha vai desaparecer, para depois ressurgir, e assim por diante. Já no início do filme quando o velho começa a construir sua cabana de uma forma metódica, tábua por tábua, moeirão por moeirão é que nos damos conta de que o que conta, o que marca são os pequenos detalhes, gestos, olhares, ações que dispensam o diálogo, aliás bem raros. E isto ao contrário de entediar, dá uma dimensão humana a todos os personagens que por alí transitam: os soldados dos dois lados, o homem ferido que é deixado no milharal  e que é salvo pelo velho sem questionamento de nenhum tipo. É apenas uma vida que está em jogo. 
 
Aqui tudo é contemplativo. Os sons, a floresta, o rio, vôo dos passaros. Só o que não é é o amadurecimento da menina,  onde numa cena belíssima ao caminhar pelo milharal nota que algumas folhas de cana começam a se manchar com seu sangue menstrual. É a sua transoformação em mulher, juntamente com o amadurecimento da colheita. E é assim numa metáfora que presenciamos o crescimento dos dois.
 
A obra tem uma construção de forma artesanal. O diretor usa o tempo real como narrativa. Vez por outra cria ações desconcertantes quando coloca sua câmera nos barcos que rodeiam a ilha ou em grua (ou será drone) que do alto criam um efeito dialético em sua estrutura. Uma preciosidade.  A história se coloca lado a lado entre a ilha e o entorno. Se contemplam e se complementam. É uma obra minimalista, que se vale de uma estética dura, seca, como por exemplo no filme brasileiro "Vidas Secas"  de Nelson Pereira dos Santos. Não se discutem as causas, apenas se procura sobreviver com aquilo que está à mão. Aqui a ilha, naquela o êxodo. É o homem atrás de seu destino, ora fugindo, ora enfrentando.
 
Na cena inicial, ao chegar a ilha e revirar a terra para avaliuar seu potencial o velho acha um apito de chamar ganso ou coisa parecida, e que muitas vezes tira do bolso e nunca usa. Na cena final, o novo pretendente também ao revirar a terra acha a boneca de pano da menina. é uma bela metáfora do novo e o antigo. O velho não tem mais espectativas de sua condição, enquanto que a menina deixa para trás sua inocência.
 
Enfim, se você quer ter uma experiência um pouco diferente do que a programação de cinema tem a oferecer, "A Ilha do Milharal" com certeza vai surpreendê-lo através de sua beleza, sua narrativa, e sua estrutura dramática. Vale a pena conferir. Até porque o filme continua em cartaz na Sala Norberto Lubisco da Casa de Cultura Mário Quintana.
 
 
Tópicos:
 
  • O filme foi pré-selecionado pela Georgia a uma vaga no Oscar de melhor filme estrangeiro de 2015.
  • O diretor George Ovashvili graduou-se no Instituto Nacional de Cinema e Teatro da Geórgia. Trabalhou com publicidade e dirigiu peças infantis. Este é seu quarto filme. Os outros são: Gagma Napiri,  de 2009, Zguis donidan, de 2005 e Charrete, de 1997.
  • Aliás, Gagma Napiri, andou sendo exibido por aqui em 2015 num ciclo de filmes da Geórgia mostrado na Sala P. F. Gastal. É um filme impressionante.
  • Os outros filmes dessa mostra foram "Pirosmani", Keep Smiling", "Repentance", e "A Minha Vó".
 
 
 
 
 
 

A  LUTA DESIGUAL DE UMA MULHER ISRAELENSE QUE QUER APENAS UMA COISA: O DIVÓRCIO

Veja o trailer:

Na primeira cena de "Gett - O Divórcio de Viviane Amsalem" mostra em close, de baixo para cima, o rosto sisudo do advogado da pretendente, Carmel Ben (Menasche Noy) olhando para sua cliente e posteriormente dizendo aos juízes: "sinto dizer, meritíssimos, que o marido de minha cliente se negou a comparecer, nem cooperar". 

Nada demais em qualquer outra sociedade, mas acontece que ele está em um tribunal israelense e o marido, neste caso, é quem decide se concede ou não, pois assim ditam as leis religiosas de Israel.

O filme, que foi indicado ao Oscar de melhor produção estrangeira e não levou, o que não quer dizer nada, é um drama forte e angustiante sobre uma mulher Viviane, interpretada por Ronit Elkabetz, que também dirige,  que não ama mais seu marido e quer o divórcio. Apenas isto. E terá de lutar contra a intransigência de rabinos ortodoxos, não habituados a tamanho disparate e contra todas as leis de uma sociedade patriarcal de conotações machistas.

Na cena seguinte Elisha, o marido, interpretado por Simon Abkanian, pede para ela voltar. Só depois é que a personagem feminina aparece e seu olhar firme e determinado nos faz ficar de seu lado desde e início e acompanhar sua luta de mais de 5 anos. Luta desigual, desumana até, pois existe todo um manancial de leis contrários a sua causa.

O filme é surreal e claustrofóbico pois só tem um cenário: a sala do júri e possui caminhos e descaminhos tortuosos e desesperadores, pois tudo e todos, com exceção de seu advogado, são contrários a sua pretensão. Ora, como pode uma mulher atentar contra toda uma cultura secular baseada em ritos religiosos para ambicionar um desejo de liberdade conjugal. É o absurdo em um grau muito elevado, e que mostra como a mulher é relegada a um plano secundário, inferior, a mercê de uma legislação pré-estabelecida. Se ela quer o divórcio, é o marido quem decide se dá ou não. E pronto.

Não que Viviane tenha sofrido algum tipo de agressão física. Não, nada disso. Ele até que é um bom marido, bom pai, homem conhecido na sociedade, culto, com boas relações de amizade, íntegro. Então, porque essa mulher quer o divórcio? É o que se perguntam o tempo todo os 3 rabinos juízes que acompanham o caso, com espanto no rosto, tal qual o espanto de nós, espectadores. Como ela mesma diz, ao ser perguntada: "Eu não o amo mais".

Não é fácil de assistar ao filme. Ele não da tréguas, não relaxa, não aponta nenhum indício de mudança. Aliás, o roteiro escrito por Ronit Alkabetz e seu irmão Shlome Alkabetz é tão fechado, tenso, que não se presta a nenhum tipo de maniqueísmo. Não distende, não flexibiliza, e não demonstra nenhum indício de reviravolta, de final, feliz, de esperança. Antes da metade do filme já estamos tomados de um estupor de indignidade que não resta outro caminho a não ser o de seguir adiante, torcendo, torcendo.... É um jogo de cartas marcadas.

Cabe dizer que todos os personagens são bem embasados, verossímeis e seus pontos de vista, não mudarão a visão dos julgadores e nem acrescentarão algum questionamento que possa alterar o fato aqui colocado. O que mais assombra nesta produção isralense de 2014 é que os anos correm e nada muda. Nem a cara de espanto dos protagonistas e nem a nossa. Elisha, o marido, deita e rola, não comparece as sessões e nem se toca. Está na dele e pronto. Sua mulher está já a 3 anos fora de casa. Trabalha como cabeleireira para ajudar seus 3 filhos. E sua vida é tão absurda que até um encontro num bar com um amigo é motivo de debate no tribunal. Como ela pode fazer isso, uma mulher casada!!! Quem é o amigo? Ela já o encontrou outras vezes? Tudo isso é questionado e mostra um preconceito nojento e aviltante. Você torce abertamente por Viviane. Mesmo quando os juízes sugerem que ela volte a viver com ele por algum tempo, o que ela faz, e volta a dizer com convicção que quer o divórcio, muda alguma coisa. Aliás, não muda nada. Só a aparência dessa mulher. Já não se importa muito com seu visual de mulher recatada. Veste-se agora com roupas coloridas, sandálias e pés desnudos, cabelo solto. Viviane vive. Ela só quer sua liberdade.

O que marca também na produção é a interpretação dos personagens, cada qual com uma carga de  densidade muito convincente. Eles usam o olhar, o carisma, os trejeitos, os meneios de cabeça, o encolher de ombros, as caras de espanto e desdém. Qualquer gesto tem muito a dizer, mais do que as palavras. E o mais incrível é que todos aparentam ser verdadeiros, apenas estão em lados opostos. 

Por outro lado os planos são estáticos, a câmera não glamouriza, não suavizada, inexiste uma trilha sonora. Tudo é seco, as paredes nuas acentuam essa rigidez. Os diálogos são enxutos, diretos, sem nuances ou interpretações. Dizem o que querem dizer e pronto. As testemunhas dos dois lados é um  caso à parte. Tanto podem ser testemunhas contra ou a favor, isto muda de acordo com as perguntas dos advogados.  Tudo depende de um ponto-de-vista. É um dos achados do filme.

O final é brilhante, de uma beleza que emociona. Após cinco anos de batalha finalmente Viviane consegue seu divórcio. Mas o preço que ela paga por isto nos mostra, mais uma vez o absurdo de uma  sociedade que em pleno século XXI ainda mantém leis esdrúxulas e arcaicas a reger relacionamentos, tendo por tutela tribunais amarrados a leis que mantém a mulher debaixo de um jugo escravo e opressivo, onde a desigualdade mostra sua face mais  desumana do fundamentalismo religioso, até porque a luta de Viviane Amsalem não é apenas dela mas de todas as mulheres que representa. Com certeza é um dos filmes mais impactantes que apareceram por aqui.

Tópicos:

Direção: Ronit e Shlomi Elkabetz

Produção: Israel/França/Alemanha (2014)

Elenco: Ronit Elkabetz, Simon Abkarian, Menashe Noy, Gabi Amrani, Dalia Beger

Roteiro: Ronit e Shlomi Elkabetz

Prêmios:

Nomeado ao Globo de Ouro

Vencedor de Melhor Filme no Best Picture Award de Israel

Vencedor de Melhor Filme no Hamptons Film Festival

Vencedor do Audience Favorit Award no festival de Jerusalem de 2014

Ronit já atuou em 30 filmes e dirigiu 3, entre eles o elogiado A Banda

 

CORAÇÃO DE LUTO, O PRIMEIRO FILME BRASILEIRO PIRATEADO NO EXTERIOR

Veja o Trailer:

Amparado por uma vendagem absurda de um de seus quatro 78 rotações que gravou para a Chantecler em 1959, tendo no lado A Gaúcho de Passo Fundo e no B, Coração de Luto, foi somente em 1966 que Teixeirinha partiu para uma nova empreitada em sua carreira: o cinema.

Ainda sobre o disco, que permanece imbatível até hoje como o mais vendido na história musical brasileira, cerca de 15 milhões de cópias, segundo o assessor jurídico da Warner, que adquiriu o acervo da Chantecler, Paulo de Biaggio, as 3 fábricas não davam conta da prensagem: “Eu nunca vi nada igual na indústria fonográfica. Os caminhões chegavam e nem entravam no depósito, iam direto para os distribuidores e para as lojas. Em lugares distantes, como no Nordeste, a espera de novas remessas fazia com que o disco fosse adquirido no câmbio negro pelo triplo do valor”.

Em 1965, a música que já fazia sucesso até fora do Brasil chamou a atenção do produtor de cinejornais da Leopoldis Som, Derly Martinez, que fez uma proposta ao cantor: fazer um filme baseado na história da música que Teixeirinha dizia ser verídica.

Feito os acertos iniciais foi somente em 66 que a Empresa e o cantor assinaram o contrato. A idéia era fazer um filme com profissionais experientes e a direção coube ao espanhol Eduardo Llorente, a fotografia ao uruguaio Américo Pini e o roteiro, feito todo ele em cima da letra da canção também ficou em mãos de Llorente. O próximo passo foi a captação de recursos o que foi feito junto a alguns bancos já que o nome Teixeirinha era muito bem visto comercialmente à época

As filmagens iniciaram em março de 66, em Belém Velho e se encerrou em setembro. O filme gerou grande expectativa na população riograndense, principalmente os fãns do cantor, crítica e até produtores interessados na divulgação do mesmo.

Lançado em 67, o filme que custou 120 mil cruzeiros, uma fortuna para a época, estreou em sete cinemas da capital: Imperial, Avenida, Colombo, Atlas, Rosário, Marrocos e Tália. Após, foi para o interior e pro resto do país. A boa aceitação fez com que distribuidores brigassem, literalmente, para terem o direito de exibir o filme.

Na edição do Correio do Povo de 27/09/67, dizia que nas primeiras semanas mais de 40 mil já haviam assistindo a produção, gerando até ali uma renda de 53 mil cruzeiros.

A película, com duração de 90 minutos, conta a história do menino Vitor, vivido pelo ator mirim Miro Soares, que ao voltar da escola vê de longe muitos pessoas em volta do rancho onde vivia com sua mãe, dona Ledurina (Amélia Bittencourt), que após um ataque epilético cai em cima de uma fogueira.

Com a morte desta, o menino passa a perambular de casa em casa, até parar em Porto Alegre, onde faz de tudo um pouco, de jornaleiro a vendedor de doces, de carregador de malas a engraxate. Sempre com a cabeça voltada para a música começa a compor canções baseadas em seu infortúnio, que com o tempo passam a ser melhor buriladas até apresentar-se em festas de amigos e conhecidos. Com mais tempo começa a se apresentar no rádio, o grande veículo de comunicação da época e daí para a gravação.

A fotografia em preto e branco deu ao filme um tom sombrio e dramático, realçando ainda mais a saga do menino. A produção foi exibida em todos os países castelhanos vizinhos do Brasil, chegando a ser exibido em Portugal e em outros países europeus, e também nos Estados Unidos. Em todos eles foi muito bem na bilheteria só que o dinheiro, quando chegava, era pouco, pois já naquela época o filme foi pirateado e exibido sem a contrapartida aos produtores.

Com o êxito deste primeiro projeto Teixeirinha tomou fôlego e partiu para outras produções, 12 no total, sempre levando seu público fiel que nunca deixou de prestigiar as aventuras de seu ídolo na tela, sempre salvando a mocinha, no caso Mary Terezinha, das garras de bandidos e mal-feitores de todo tipo. Grande Vitor Mateus Teixeira, que vai ficar para sempre na memória do cancioneiro brasileiro e principalmente riograndense.

Tópicos:

Direção: Eduardo Llorente.

Produção: Leopoldis Som e Teixeirinha.

Produtores: Derly Martinez e Clovis Mezzano.

Fotografia: Américo Pini.

Diálogos: Ernani Ruschel.

Música: Sandro Hohage.

Elenco: Teixeirinha, Mary Terezinha, Miro Soares, Désar Lages, Branca Regina Muniz, Dorival Cabreira, Nelson de Lima, Osvaldo Ávila, Amélia Bittencourt.

Entre os colaboradores aparecem a Varig, Cia Geral de Indústria, Lido Hotel, Siomara Automóveis, Palácio dos Enfeites, Banco Frederico Mentz.

Na primeira cena em que o menino aparece ele está cantarolando a música “Lili Marlene”, do filme homônico Alemão, cantada por Marlene Dietrich.

 

 

 

 

 EXISTE UM LUGAR QUE FICA "A OESTE DO FIM DO MUNDO', ONDE TUDO PODE ACONTECER....

 

Assista o trailer:

A Oeste do Fim do Mundo, produção entre Brasil e Argentina é um daqueles filmes que você assiste e não esquece. Ele se passa num lugar inóspito, árido, e se o fim do mundo existe com certezas é por ali, talvez um pouquinho mais pra direita ou mais pro lado, mas é por al

É onde vive Leon (César Troncoso), na sua casa que é um posto de gasolina. Lá de vez em quando um que outro carro abastece e segue seu destino. Nunca vemos essas pessoas, apenas Leon, na sua tediosa e cotidiana tarefa. É um personagem fechado em si mesmo, sem grandes perspectivas ou sonhos. Cuida de seus traumas que adquiriu na guerra das Malvinas. Não atende o telefone porque não quer falar com seu filho. Leon é um homem solitário. Seu único relacionamento é com o amigo Silas (Nelson Diniz), um brasileiro que passa todos os dias por seu posto e lhe traz peças para que Leon possa consertar sua moto, talvez seu único objetivo de vida.

O coração desse homem é como o cenário: hostil, duro. Leon olha em volta e só vê montanhas, deserto e mais nada. Mas ele prefere isso a seu passado. É ali que ele consegue um pouco de tranqüilidade. Não tem perspectivas. Pelo menos até a chegada de Ana, personagem misteriosa que procura por algo, que como Leon, tenta esquecer seu passado, que em flash-backs mostra um casamento fracassado e opressivo. Portanto, o cenário é uma metáfora de seus mundos.

De início os diálogos são difíceis, porque Leon se recusa a entender a língua de Ana que também reluta em aprender o idioma de Leon. É como um jogo psicológico que vai se distendendo, mas que ao mesmo tempo vai aproximando os dois personagens através de pequenos gestos, de olhares furtivos, de cooperação mínima entre um e outro.

A bela fotografia de Alexandre Berra contribui muito para o visual poético do filme. Aos poucos você começa a entender que esse cenário passa a ser um elemento  de guarida aos dois personagens, que passam a buscar um no outro uma possível aproximação, um arremedo de sentimento que pouco a pouco vai nascendo. Afinal, eles não tem mais nada a perder e nem pra onde ir. Leon começa a atender e a falar com seu filho, começa a dizer que o ama. Ana começa a olhar ternamente para seu companheiro. Se a porta de entrada bate constantemente é como o destino batendo  seus corações. Até a moto Leon conseguiu consertar.

O diretor Paulo Nascimento, que também escreveu o roteiro, tem uma direção segura, objetiva, mesmo que em muitas vezes o filme tenha momentos contemplativos, arrastados, lentos, o que para alguns possa passar uma idéia de monotonia. O amigo Silas é um personagem bem construído, é importante nesse triângulo, pois diz constantemente a Ana que "liberdade é não fazer perguntas". Que as pessoas estão ali porque estão e pronto. Não precisam saber mais nada de suas vidas. Um velho amigo de Leon, que foi seu comandante na guerra e hoje motorista de caminhão que passa ali uma noite também tem uma profundidade psicológica densa, objetiva e intensa. É o contra-ponto de Leon. Fala de seu passado com desdém, sem remorso e já adaptado aos novos tempos.

O diretor disse que este “é um lugar amplo, onde a gente pode se encontrar”. E foi aqui, a Oeste do fim do mundo que Ana e León se encontraram. Mesmo no meio do nada, sempre existe espaço para um renascimento, para uma sobrevida, para um encantamento. É isto que este belo filme nos diz.

Tópicos:

  • Elenco: César Troncoso, Nelson Diniz, Alejandro Fiore, Marcos Verza, Clemente Viscaíno, Naiara Harry, Santiago Cinollo.
  • Fotografia de Alexandre Berra.
  • Direção de Arte de Voltaire Dankiwaidt.
  • Produção: Mônica Catalane
  • Coprodução> Bufo Films e Panda Filmes.
  • Direção Musical de Renato Muller.
  • O filme foi rodado em 13 dias perto de Uspallata, pequena cidade Argentina de 4 mil habitantes e a 100 quilômetros de Mendoza, perto da fronteira com o Chile.
  • Ali também foi rodado 7 Anos no Tibet, com Brad Pitty, de 1997 e também o faroeste Lucky Lucky de 2009.
  • Foi vencedor no Festival de Toronto de Melhor Filme na categoria longa-metragem.
  • Fernarda Moro recebeu o troféu de melhor atriz na 7ª edição do Festival de Cinema Brasileiro em Toronto.

 

 

 

 

 

 

RODRIGUEZ O PEDREIRO QUE ERA MAIS FAMOSO QUE ELVIS, E NÃO SABIA...

Assista o trailer:

Existem histórias e estórias. Esta, de Sixto Rodriguez, até então um trabalhador braçal do ramo de demolições em Detroit no final dos anos 90, que em algum ano da década de setenta havia entrado num estúdio e gravado um álbum é quase uma fábula, se não usarmos outros adjetivos como inacreditável, fantástico ou fantasiosa, digno de um roteiro perfeito e um final feliz. Senão,  imagina você dormir como Rodriguez e acordar com a fama maior do que a de Elvis. Pode? Sim.... pode....

E isto é contado no filme “Searching For Sugar Man”, de 2013, de Malick Bendjelloul, que em 2013 recebeu o Oscar de melhor documentário e também recebeu o premio BAFTA da Academia Britânica.

O músico foi descoberto pelos produtores Dennis Coffey e Mike Theodore, que o viram cantando numa espelunca em Detroit, no final dos anos 60. Diz Dennis, que tem   em sua lista nomes como Stevie Wonder, Marvin Gaye, Ringo Star, entre outros: “o único cara que conheci até aqui que escrevia tão bem era Bob Dylan. No entanto Rodriguez era um poeta, pois colocava em suas letras aquilo que via nas esquinas decadentes de Detroit”. Foram eles que gravaram o primeiro álbum “Cold Fact”, de 1970.

O documentário que tem uma montagem ágil,  mescla depoimentos de pessoas que conheceram Rodriguez em épocas variadas e que o descrevem como trabalhador braçal que mais parecia um indigente que ia de refúgio em refúgio atrás de seu sustento, isto na década de 90.

Ainda em 71, Rodriguez grava seu segundo disco “Coming From Reality. E é seu produtor Steve Rowland, que já havia gravado Jerry Lee Lewis, The Cure, Peter Frampton quem diz: “Ele não era só um talento. Era um sábio, um profeta. Não entendo até hoje como ninguém nos EEUU ouviu seus discos, eu disse ninguém”.

Mas não foi o que aconteceu na África do Sul, principalmente na Cidade do Cabo. Quem diz é Stepeh Segerman, dono de uma loja de discos: “dizem que foi uma moça que chegou aqui dos Estados Unidos para visitar seu noivo e trouxe o álbum junto. De repente todo mundo começou a ouvir e gostar e como não tinham onde compra-lo começaram a gravar cópias e a passarem uns aos outros. E de repente começamos a ouvir aquelas músicas que falava de sexo, drogas, de luta por liberdades, isso em pleno aparthaid, num estado opressivo e uma sociedade conservadora. Meu Deus, de repente Rodriguez virou ícone, e suas músicas se alastraram que nem pólvora por todo o país. E não sabíamos nada do cara, a não ser sua cara na capa. Não existia Internet. Nada”

É Stephen quem diz ainda: “em qualquer casa de branco que fossemos encontraríamos discos dos Beatles, de Simon and Garfunkel e Cold Fact, de Rodriguez. Uma de suas  canções se chamava  anti-stablishment e não sabíamos o que era isto. Até que depois descobrimos que era quem protestava”.

O jornalista Craig Bartholomeu diz: “este álbum foi o hino de toda uma geração que lutava por liberdades. Foi ele quem liberou nossas mentes e nos deu um motivo para lutar contra o regime autoritário”. Ele continua: “e não podíamos fazer nada. Sofríamos restrições e embargos de todo mundo. Ninguém de fora tocava aqui e ninguém daqui tocava fora. Estávamos isolados do mundo. E era Rodriguez quem nos dizia: há uma saída, há uma saída. Toda a geração musical que se formou a partir daí tinha esse músico como referência, como ídolo”.

O documentário avança e mostra que mesmo 20 anos depois, nos anos 80, ninguém na África sabia nada sobre o músico. O mais incrível é que foi a partir de um boato, de que ele  havia se suicidado em cima do palco que levou a sua busca por toda a década de 90, já com a internet como ferramenta e mesmo assim nada de saber alguma coisa a seu respeito a não ser a certeza de sua trágica morte.

Foi somente em 96 que seu segundo disco “Coming From Reality” foi lançado na África e mesmo assim o mistério continuava. Com depoimentos emocionantes de parentes, conhecidos e admiradores foi somente em 98 que conseguiram levar o músico para a África, onde foi recebido e ovacionado por uma multidão, participando de turnês por várias cidades e sempre com ginásios lotados. O mais incrível é que seu sucesso na África ocasionou a sua descoberta em seu próprio país, onde mesmo tardiamente foi reconhecido e teve um tratamento decente, de astro.

Achou incrível, pois bem esta é a história que o premiado documentário “Searching For Sugar Man nos conta, de uma forma a emocionar a quem assiste.

Tópicos:

  • Segundo estimativas de donos de lojas, na Africa do Sul rodriguez vendeu mais de 20 milhões de cópias.
  • Já Clarence Avant, um dos antigos donos da gravadora Sussex Records, diz que nos Estados Unidos ele vendeu 6, eu disse seis, cópias.
  • Numa pesquisa feita na áfrica sobre artistas populares, Rodriguez era mais popular que Elvis Presley.
  • O Documentário também foi aclamado do prestigiado Festival de Sundance.
  • O diretor sueco Malick Bendjelloul cometeu suicídio em 2014.
  • Rodriguez ainda voltou mais 4 vezes a África para turnês.
  • Segundo suas filhas, com dinheiro que conseguiu nessas turnes ajudou instituições e parentes próximos.
  • No Brasil o documentário foi lançado epenas em DVD e pode ser encontrado na Espaço Vídeo.

 

 

 

                             

 

 

 

 

 

 

 

 

A FESTA DE BABETTE OU A ‘ÚLTIMA CEIA’ DAS BEATAS

     Veja o trailer aqui:  

A primeira vista A Festa de Babette (Babettes Gaestebud), de 1987, é um filme com um forte viés religioso, já que mostra a singular vida de duas irmãs, Martina e Felippa, filhas de um pastor luterano, que tem como meio de vida a pregação da salvação da alma pela oração, pelo canto, pelas boas ações e pela extrema devoção aos princípios quase monásticos pregados pelo pai, isto no final do século XIX.

No entanto, o que acontece nesse minúsculo vilarejo dinamarquês, as margens do mar Báltico, de casas pequenas e próximas é muito mais do que se apresenta. As relações não são tão amistosas assim, já que velhas rusgas e desentendimentos, rancores e invejas afloram em diálogos furtivos, secos, egoístas. O puritanismo é muito mais de fachada do que real, a beatitude é muitas vezes posta a prova, ora pela chegada à vila do cantor de óperas Achiles Papin, que dá aulas a Martine, quando jovem, e sonha em faze-la uma grande dama da canção francesa, (isso em flash-backs que é muito usado no filme), ou então do castigo imposto por seus superiores ao jovem tenente Lorenz, que deve permanecer na vila um determinado tempo. Seu encanto pela bela Felippa não consegue ultrapassar a barreira de seu puritanismo e sua devoção, o que acaba por minar a tímida insistência do jovem mancebo, não restando outra alternativa ao partir dali senão o de tentar esquecer tão platônico e inalcançável amor.

É nesse ambiente  impregnado de elevados princípios morais, desprovido das emoções mundanas, que chega Babette (Sthepane Audran), fugindo da guerra civil francesa, disposta a trabalhar até de graça, querendo apenas um canto onde possa esquecer suas tragédias pessoais. E ao ganhar a confiança das velhas senhoras é que a ex-chef de cozinha de importantes restaurantes passa a praticar aquilo que conhece como poucos: a arte de cozinhar. E é no antagonismo dessa situação que o filme cresce de uma maneira absurdamente agradável e prazerosa e que o eleva a condição de uma verdadeira obra-prima do cinema contemporâneo.

Dirigido por Gabriel Axel,  pode ser definido como uma peça sinfonia, já que nos apresenta três partes bem definidas: a primeira é a apresentação dos personagens, o contraste das pessoas do vilarejo com suas regras, deveres e princípios religiosos e as que vivem na corte, apegadas aos prazeres mundanos de uma vida abastada porém vazia, festiva não reflexiva. A segunda parte da sinfonia nos mostra os elementos acomodados ao seu destino, interligados por laços do passado que lhes deixaram marcados na alma os amores não correspondidos, as vicissitudes experimentadas e o olhar um tanto melancólico para suas vidas sem perspectivas. E a terceira parte é a que eclode como ponto convergente das duas primeiras. E é aí que o diretor mostra seu talento com 30 minutos finais de puro êxtase cinematográfico, uma elegia ao cinema de arte, que mostra como poucas vezes se viu o casamento perfeito de  cortes, edições, closes, montagem, tudo dentro de uma estrutura narrativa ágil, dinâmica, coerente, onde as partes divergentes acabam em uníssono onde a atemporalidade dá lugar ao belo, ao prazeroso.  

Fruto de uma prática constante em sua vida, Babette acaba ganhando um prêmio lotérico de 10 mil libras, e comunica a suas patroas que vai embora, mas antes vai oferecer um jantar aos membros da pequena comunidade. Vai até Paris e traz toda a sorte de iguarias, como vinhos e champanhes, pescados nobres, frutas, temperos, talheres filhos, taças de todo o tipo além de codornas e até uma tartaruga viva, enfim, tudo o conhecimento que acumulou durante uma vida de cozinha.

Posta a mesa em linho branco, os pratos dispostos simetricamente junto às taças, os convivas são introduzidos no recinto. Todos os membros da seita, e como contraponto, o agora general Lorenz, como legítimo representante da casta dominante.

E é então através do pecado da gula que se dá o amortecimento da alma, a elevação espiritual, onde a refeição, une, acaricia, alivia, redime os espíritos, eleva os sentidos e entorpece os corações. A cada prato servido, com cenas onde os detalhes são perceptivos  aos olhares mais atentos, a câmera mostra na cozinha as frituras, os caldos, os condimentos, a montagem dos elementos, segue-se torpor dos convidados à cada garfada saboreada, a cada líquido sorvido, isso com o olhar de exclamação e êxtase, como que descobrindo naquele instante que todo o conceito religioso de punição havia caído por terra, como se o medo  estivesse sendo soterrado pela descoberta do novo mundo dos cheiros, aromas, sabores, enfim, do pecado. Sim, porque não devemos esquecer que temos expostos o conceito de religiosidade contra o conceito mundano, da oração e do pecado, do medo e da libertação.

E o diretor, numa sacada de mestre vai intercalando os sabores com as citações:

   “que meu corpo se alimente hoje. Que meu corpo seja escravo de minha alma. Que                   

     minha alma avance em frente até a Glória do Senhor. Amém”...

E chega à mesa um prato com frutas diversas, uvas, abacaxis, figos....

    “Queridos irmãos, as únicas coisas que podemos levar a outra vida são aquelas que

      demos aos demais nesta”.

Um clericot 1860, com sopa de tartaruga e após codornas....

     “A misericórdia e a verdade se encontram. A justiça e a mentira se beijarão

       novamente......

Codornas ao molho de pêssego, pudins com figo........

     “Chega um tempo em que se abre nosso olhar e então compreendemos que a graça é

       Infinita....”

Batatas com recheio de amêndoas, bolo de nozes, cafés.........

Após, cada um vai para casa, mas aí já não são mais os mesmos.....

No diálogo final, Felippa diz a Babette:

- Não deverias ter gastado todo o teu dinheiro nessa festa. Agora voltarás a ser pobre.

O que Babette retruca:

- Um artista nunca é pobre

- Este era o tipo de refeição que servias nos restaurantes?

- Sim, eu os fazia felizes quando dava o melhor de mim mesma.

E aqui o coração enternecido das velhas irmãs mostra que ainda se eleva para o Senhor quando uma delas diz.

-Isto não é o fim de tudo Babette, estou segura de que não é o fim. No paraíso tu serás a grande artista que Deus havia pensado. Que feliz farás os anjos.......

Tópicos:

  • A Festa de Babette foi premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro de 1988.
  • Globo de Ouro de 1989
  • Prêmio Bafta no Reino Unido.
  • Festival de Cannes em 1987.

Elenco:

  • Stephane Audran (Babette)
  • Birgitte Federspiel (Martina)
  • Bodi Kjer (Felippa)
  • Jarl Kulle (Lorenz)

Diretor:

Gabriel Axel, foi roteirista e cineasta dinamarquês. Faleceu em 2014. Entre produções para cinema e TV tem 69 créditos.

O filme foi baseado num conto da escritora dinamarquesa Karen Blixen, que usava o pseudônimo de Izak Dinesen, já que no início do século as mulheres escritoras não eram bem vistas pela sociedade.

 

 

 

 

 

 

UM ÍCONE DA CONTRACULTURA

Assista o trailer aqui:

Easy Rider, ou Sem Destino, de 1969 foi um marco dentro da cinematografia americana, tanto  quanto o foi Cidadão Kane, de Orson Welles, de 1941, claro, isso no aspecto de impacto visual e também de temática.

Dirigida por Dennis Hopper , e tendo Peter Fonda na produção, dois atores já com alguma bagagem cinematográfica, Hopper em faroestes e Fonda em produções de Roger Corman, o filme que custou a bagatela de US 500 mil e faturou US 60 milhões, encheu o bolso dos dois e alavancou suas carreiras a alturas inimagináveis.

Aliás, dois anos antes, em 67, Jack Nicholson escreveu um roteiro The Trip, que Roger

Corman dirigiu. O filme era um alerta sobre a disseminação do consumo das drogas alucinógenas, entre elas o LSD, na sociedade americana, inclusive com a participação de Hooper e Fonda. Nada como um dia depois do outro.

 

O resultado foi que Easy Rider  rompeu todos as barreiras  cinematográficas,  até ali padronizados dentro de uma estética do american way of life, da ótica militarista pós-segunda guerra, e de uma sociedade obcecada pelo consumismo dentro de um regime capitalista. O filme  se rebelava abertamente contra tudo isso, com uma linguagem inovadora onde pregava o amor livre, pacifismo, liberdade de expressão, igualdade racial, sexual além de fazer apologia das drogas e do sexo, com cenas de nudez e principalmente  chapação  nunca antes vista.

Na história Billy (Hopper) e  Wyat (Fonda) fazem uma transação de cocaína onde ganham uma quantia considerável, trocam suas velhas motos por Harley Davidsons choppers  e partem em busca de aventuras, da Califórnia até a Flórida, passando antes pela Louisiana, numa festa de Mardi Grãs, o carnaval americano.

Disse Fonda que eles encararam tudo isso como se fosse um Western, por isso a referência dos nomes Wyat (de Wyat Earp) e Billy (the Billy the Kid), dois lendários personagens da história do país, o primeiro como xerife e o segundo como fora-da-lei. Não é por acaso que Billy se veste como um autêntico cowboy, com roupas de couro, chapelão, os apetrechos, apenas com a moto no lugar do cavalo.

Ao largo do caminho vão se acentuando as diferenças do modo de vida caipira das comunidades por onde passam com todo cipoal  repressivo ainda existente e o novo trazido pelos motoqueiros que vão sentir na pele uma América ainda presa a tradições racistas, machistas e opressoras. Diferença que sente o personagem Wyat, que usa uma jaqueta de couro com a inscrição do capitão América, herói americano usado desde a época da segunda guerra com a intenção de levantar a moral da população. Não é a toa que ele  carrega a bandeira americana estampada em sua jaqueta e no capacete, numa leitura enviesada do que ele representa e o que pode vir a representar.

Este clássico da contracultura, denominação cunhada pelo sociólogo Theodore Roszak que conceituou este período como uma nova tomada de posição pelos jovens rebeldes mostra também que toda a liberdade tem um preço a pagar, independente de que lado você esteja.

Após pegar uma noite no xadrez  onde a dupla encontra George, advogado beberrão e com idéias na cabeça, o filme sobe o tom. Jack Nicholson, numa atuação impagável (que inclusive lhe deu uma indicação ao Oscar como ator coadjuvante) simplesmente rouba as cenas inclusive na mais memorável delas, quando à noite, sentados a beira da fogueira soltam o verbo num   papo regado a bebida e  marijuana (aliás, existe menção a drogas como cocaína e principalmente LSD).

Nessa relação entre George e a dupla fica evidenciada a diferença de postura de duas gerações, uma representada pelo advogado idealista, jovem, esclarecido, porém pertencente a uma casta dominante e de outro lado a rebeldia, a transgressão, a afronta, que vai encher de ódio aqueles que encontra pelo caminho, que despejarão todo o seu enraizado preconceito fruto de uma ideologia caduca e alienada que não consegue aceitar e muito menos conviver com a nova ordem que o vento começa a soprar.

É George quem lhes diz: “Sabem, este país já foi muito bom durante um certo tempo por isso não entendo porque as pessoas tem medo de vocês. Talvez elas tenham medo do que vocês representam. Por isso nunca diga que elas não são livres, pois elas vão lhe matar e espancar para provarem o contrário”. Uma pérola.

Existem cenas que são verdadeiras trips, como no do cemitério, onde a câmera abusa de malabarismos para tentar uma fidelização à viagem psicodélica da troupe. Aliás a banda sonora do filme é no mínimo, para dizer assim, perfeita. Aparecem nomes como Stepenwoolf e seu pertardo Born to be Wild, The Byrds, The Band, The Eletrick Prunes, sempre em cenas de estradas e quase todas elas tocadas na íntegra, coisa impensável para a época.

Enfim, a produção tem um ideal revolucionário ao mostrar comunidades hippies, outras alternativas de auto- sustento, todas em um processo embrionário de uma nova ordem social e política que os jovens buscavam como contraponto ao velho modo de vida vigente.

O filme, passados quarenta e seis anos, ainda hoje mostra um vigor estético e uma linguagem cinematográfica poderosa, que fez os grandes estúdios da época buscarem uma nova geração de cineastas para seus projetos, entre eles George Lucas, Martin Scorcese, Brian di Palma, Steven Spielberg e outros.

 

TÓPICOS

  • Produção Columbia Pictures. Apesar de não levar nenhum prêmio, o filme foi aclamado no festival de Cannes.
  • Fotografia do húngaro Lasló Kovács, de New York New York, Shampoo, The Last Waltz.
  • Elenco: Peter Fonda, Dennis Hopper, Jack Nicholson,  karen Black, Luana Andrés, Toni Basil, Robert Walker e numa ponta o lendário Phil Spector produtor de muitas bandas, entre elas Beach Boys. O criativo e com uma visão musical mercadológica invejável, colaborou também com Os Beatles, Ramones, John Lennon, tornou famosos grupos como The Ronettes. Na década de 2000 enfrentou dois julgamentos por assassinato e recebeu uma condenação por homicídio de segundo grau.
  • Diz a lenda que para dar maior veracidade a história os atores realmente usaram drogas, mas em se tratando de Dennis Hopper o não uso dela é que causaria espanto.
  • Segundo aqueles que trabalharam na produção rolou muitas brigas devido as constantes bebedeiras de Hooper, e que alguns atores se mandaram, como Rip Torn, que faria o papel que ficou com Nicholson. Aliás, Hooper também aprontou (e muito) nas filmagens de Apocalipse Now, de Copolla.
  • Bandas: Steppenwolf, TheBand (somente no filme, pois no disco, por problemas contratuais a música foi interpretada pela banda Smith), The Byrds, Roger McGuinn, Fraternity of Man, TGhe Jimi Hendrix Experience, The Holy Modal Rounders.
  • O filme é fácil de achar em locadoras só não assiste os do You tube pois faltam muitas cenas e ele está numa rotação acelerada.
  • A Indústria de motos jamais teve uma marketing tão forte quando da época do lançamento do filme, pois as máquinas viraram fetiche de todo jovem idealista.

 

 

 

O CULT DOS CULTS

Trailer:  www.youtube.com/watch?v=fh6ET39xtpw

Vanishing Point, ou Corrida contra o Destino de 1971 , tinha tudo pra dar errado: um péssimo roteiro, diálogos imprestáveis, atores de segunda linha e um diretor, Richard Sarafian,  desacreditado em Hollywood. Aí o cara  pega um Dodge Challenger, uma câmera ágil, tomadas arrojadas e aí o que você tem? Um puta filme, daqueles em que você deixa o cinema se mordendo, com algumas perguntas na cabeça e com a sensação de que nunca mais vai ver algo parecido.

O filme que passou em muitas sessões da tarde na TV e  quem viu não esqueceu e quem não viu deve ver é uma história banal: um cara chamado Kowalski (Barry Newman, que nunca fez nada que prestasse depois disso) é um ex-piloto de corrida que pega um Dodge como encomenda em Denver, Colorado, para entregar dois dias depois em San Francisco, na Califórnia. Assim do nada, ele diz a um amigo que vai bater o record de tempo, não me pergunte por que, e daí pra frente o que se vê na tela é muita adrenalina. As razões que movem o personagen são dúbias, excusas, não explicitadas. Sabe-se que ele é um ex-combatente do Vietnã, que teve uma tragédia pessoal, que carrega muita amargura de seu passado e que é um anti-herói em meio a uma geração desolada e sem rumo.

Na cena inicial vemos o que ele poderia fazer e não o fez na final, ou seja: ao ter seu caminho bloqueado por uma retroescavadeira Kowalski demonstra suas habilidades em se safar dessa com um cavalo-de-pau, o que não o faz no final, quando bate de frente com a mesma num suicídio libertário e impactante.

No seu caminho encontra todo o tipo de gente, como o casal homossexual que tenta assaltá-lo, a comunidade religiosa guiada por um pastor tresloucado que entoa hinos, hippies, nudistas, um adorador de cascavéis, gente fracassada de toda a espécie, enfim, o retrato de uma geração que ainda não havia se encontrado no início da década de 70, após uma guerra que minou a moral do país.

É um autêntico road-movie, e que se propõe a ser exatamente o que é: um filme de estrada, onde conta é a motivação do personagem ao ser perseguido por um bando de policiais tão malucos quanto ele, sedentos de ação, sentida toda vez que ele pisa fundo no acelerador do seu Challenger, como que querendo pisar nas cicatrizes que carrega de seu passado. O único amigo do motorista é um DJ negro e cego (Cleavon Little, ótimo) que através de seu programa de rádio  da as  dicas de onde os policiais estão a espreita. Um achado, um libelo contra a opressão do sistema, que funciona muito bem como um ato libertário da época pós Woodstock.

Todos estes elementos elevam a produção a um registro anárquico e mítico, revolucionário sem bandeiras, altruísta porém inconseqüente. A sacada do filme é que nada é explicado, você pode até a achar que o que move o personagem é a anfetamina, mas aí ficaria pueril demais

Outro achado do filme, como não poderia deixar de ser, é a trilha sonora composta de alguns clássicos do rock e de bandas como Primal Scream, Mudhoney e outras. Uma curiosidade que uma das músicas do filme, Freedom of Expression, da banda J. B. Pickers, é nada mais nada menos do que o conhecido tema de abertura do Globo Repórter.

Enfim, se você curte cinema e não viu, corre lá, com certeza você vai encontra-lo em alguma locadora, ou em algun Netflix da vida ou então da uma baixada no mesmo. Te liga meu, vai nessa.

Curiosidades

  • O filme é um dos preferidos de Quentin Tarantino
  • Foi inspirador para Steven Spielberg fazer o seu road Encurralado
  • Foi inspirador para o Guns & Roses numa música.